domingo, 23 de agosto de 2015
Na semana passada eu fui ao Detran, resolver
cá meus problemas, quando me deparei com a seguinte cena: duas senhoras na casa
dos seus 50 anos sendo impedidas de realizar a prova teórica exigida durante o
processo de habilitação para dirigir porque, pasmem, estavam com suas saias uns
dois dedos acima do joelho... E o doce – suave como um paquiderme – funcionário
do Detran de Sergipe alegou o seguinte: “vocês não estão vestidas
decentemente”! Quer dizer... Era algo tão surreal, tão inimaginável (e olhem
que eu não estou nem entrando nas outras dezenas de assuntos que podem ser
debatidos aqui...) que, sinceramente, eu quase não acreditei nisso.
Logicamente, é manifesto que – talvez
porque não saibamos lidar com nossa libido e com as questões referentes à
sexualidade, e a internet e o whatsapp estão aí pra contar a história... , ou
talvez porque ainda não sejamos tão civilizados quanto achamos que somos, ou
talvez por ambos os motivos – a exposição pública do próprio corpo ainda é uma
questão bastante polêmica no Brasil em muitos contextos sociais, mas
sinceramente ainda é de impressionar como uma coisa que deveria ser tão natural
e que você faz todo dia, como ficar pelado, (logicamente, nem sempre com a
presença de muitos expectadores...) ainda seja um tabu e que atrapalhe bastante
ainda a vida de muitas pessoas ainda em nossos dias... E, infelizmente, o
exemplo do parágrafo acima é apenas mais um exemplo possível.
Não é, portanto, de admirar que
constatemos com espanto que, em pleno século XXI, num país onde a exposição do
próprio corpo é, em muitos contextos sociais, até lugar-comum, as pessoas ainda
não se dão conta que dignidade e demais valores morais não tem relação de causa
e efeito com as roupas que se usa! Aliás... Moramos num país tropical, quente
pra cacete, e não é difícil encontrar muita gente muito mais decente que o
Silas Malafaia (que anda de terno e que é ‘religioso’) andando de shortinho e
mostrando a barriga. Não é à toa que já dizia o Ferreira Gullar: “Obscenidades
maiores são praticadas de terno, hein? De terno!!! E não pelado!”
E nessa vibe, prezados colegas,
embora precisemos admitir – logicamente não somos tão cegos assim – que as
roupas tenham sua função, como por exemplo, proteger o corpo, do frio ou do
sol, ou mesmo nos permite expressar também a nossa subjetividade, nossa identidade,
nossa maneira de viver e ser no mundo (à guisa de exemplo lembremo-nos nos
Geeks (me included) que adoram vestir camisetas de vídeo-games e afins... Da
turma ‘Zen’, que tem uma forma mais ‘descolada’ de se vestir e até mesmo do
Playboy, que também tem suas vestimentas características...) a exigência de ter
que se andar vestido, principalmente se de forma A ou B específica, serve mais
como uma máscara social que se nos apresenta em tom ainda mais alto quando nos
lembramos que as roupas servem justamente como um marco de distinção social:
anda vestido de forma A, é bom, bonito e bacana, não anda, é ‘ralé’. Sem
maiores discussões. E isso sem esquecer a nossa questão central debatida aqui:
anda vestida assim, é piranha. Sentença: execração pública ou estupro – o que
for mais conveniente. Sem direito a recursos.
Não imaginem, por
favor, que estou defendendo aqui que, a partir de agora, teremos todos que
andar todos pelados! Tiremos as roupas para um mundo mais justo! Risos! Vejam
bem, não é bem isso que estou falando (embora não tenha nada contra)... Mas
fica difícil não perceber que a exigência (eu disse EXIGÊNCIA) de andar
vestido, ainda mais de maneiras específicas (como dito no parágrafo acima), é
uma puta hipocrisia, uma vez que para o bem do comércio e, ou sob quaisquer
outros pretextos, a grande senhora mídia, esperança dos que mais nada podem
esperar, utiliza-se do corpo nu para promoverem quase qualquer coisa que seja
“vendível”.
E vejam mais: a grande mídia não é a única culpada. Pessoas comuns
fazem ‘swing’ na calada da noite, em lugares escondidos, compram ‘Playboy’,
mostram a bunda na praia, adoram ver cenas picantes na novela da Globo, tratam
‘o outro’ como um pedaço de carne, mas não em público! Em público e na vida
cotidiana comum, em nome da civilização, dos princípios éticos normatizados (e,
além do mais, ficar nu em público é crime(!) – contravenção penal prevista no
Código Penal Brasileiro, artigos 215-216 – daí é que se pode deduzir que a
norma é andar vestido com alguma coisa) defendem que não se pode ficar pelado,
sob pena de ser rechaçado, ultrajado, ofendido, humilhado, e até preso. Afinal
de contas, tratar o outro como objeto não é imoral! Imoral é andar nu...
À guisa de exemplo, pra justificar meu ponto de vista, trago de
volta aqui aquele caso da menina da UNIBAN, a Geyse Arruda: num espaço
acadêmico (onde as pessoas deveriam, em tese, pensar, ou ao menos ter algo de
bom na cuca... Mas tudo isso em tese...) e numa sociedade na qual a nudez tem
um relativamente grande espaço na arte, cinema, teatro, pinturas, esculturas ,
fotografias, e até mesmo na moda, na MODA!, as vestes da ÚLTIMA MODA que
adornavam parte do corpo da aluna da UNIBAN foram motivo suficiente para que a
turba ensandecida a ultrajasse, humilhasse, xingasse, em suma, a escorraçasse
de tal forma pela sua nudez presumida, que não poderia eu relatar aqui metade
do furor e celeuma que se pode ver no You Tube. Logicamente (?), como se isso
ainda fosse pouco, a ‘vagina da discórdia’ de Geyse ainda lhe rendeu uma
expulsão, a qual a Universidade procedeu – mas depois voltou atrás, em parte
pressionada pelo advogado de Geyse, em parte pela opinião pública – no dia
imediatamente posterior ao ‘acontecido’. Claramente esse caso ilustra com
precisão milimétrica a que ponto chega a hipocrisia social – e que não exagero
em falar nas humilhações às quais estamos sujeitos – nessas questões que
envolvem a nudez, e principalmente a nudez feminina.
Enfim... Por fim, como se não faltasse mais nada para completar a orgia
da hipocrisia social, a parte humilhada, Geyse Arruda, que se disse
extremamente abalada e coisa e tal, negociou, pouco tempo após o episódio,
tirar – dessa vez, totalmente – a roupa para as revistas masculinas Sexy e
Playboy. Com o dinheiro e a ‘oportunidade’ que a sua nudez proporcionou, a
ex-estudante de turismo decolou uma carreira na televisão... Com efeito,
existem muitas questões a serem discutidas aqui, mas, como queríamos
demonstrar, o fato é que a nudez, que é castigada, é também ferramenta de
‘distinção’ social, mas, atenção: não pode ser exibida em público, exceto se
somente em certos lugares autorizados por lei e tacitamente pelos hábitos e
costumes (como na TV, por exemplo...).
Neste contexto, o que toda essa ‘moralidade’ que regulamenta o DEVER de
andar devidamente vestido conforme a ocasião normatiza é, na verdade, a
legalização da hipocrisia e de mais ferramentas de dominação social dos sans-cullote pelos
abastados; é apenas mais uma mediatização (isso mesmo, mEdiatização) das
relações entre os homens e que constitui numa eficiente forma de fazer-nos
conhecer pelos outros de uma maneira que queremos, nos passando, muitas vezes,
por algo que não somos, construindo barreiras que limitam a possibilidade
reconhecer o outro como meu semelhante, não somente no que tange à animalidade
natural da espécie, mas em posição social, em moralidade e dignidade.
E para aqueles que pensam que eu estou meio abilolado, deixo um
último exemplo de modo a evitar que tais proposições assumam na cabeça do
leitor uma visão tal qual uma miragem ou devaneio teórico: uma empresa de
marketing da Inglaterra, visando promover o bem-estar da equipe e melhorar as
relações entre os funcionários, propôs a sua equipe que todos os funcionários
trabalhassem pelados por um dia. O evento, batizado de “Naked Friday”, não foi
imediatamente aceito, contudo, paulatinamente os funcionários da empresa
renderam-se ao convite e, de todos os funcionários, apenas dois não trabalharam
totalmente pelados – mas ainda trabalharam trajando somente peças íntimas.
Daqueles que se dispuseram a mostrar para todos como vieram ao mundo, todos
aprovaram a experiência, e, de uma forma geral, assumiram que a perda das
roupas os fez derrubar as barreiras que existiam entre eles melhorando o
relacionamento no trabalho e aumentando a produtividade (Joguem “Naked Friday”
e “The Telegraph” no Google que vocês acham a notícia).
Aí, depois de tudo isso, vocês vêm me dizer que é ‘moral’ e ‘decente’
uma regra que determine que uma mulher não pode fazer uma prova numa repartição
pública porque está ‘indecente’? Com todo o respeito do mundo, é mais que
inadmissível, em qualquer contexto, e em qualquer repartição, que a falta de
quaisquer vestimentas que sejam te impeça de ter acesso a um serviço público
PELO QUAL VOCÊ PAGA INDECENTES IMPOSTOS todo santo dia. INDECENTE é essa LEI
IMORAL que diz que homem só pode entrar em repartição pública de calça, que
terno é que é decente e deputado ganhe auxílio, vindo do bolso do contribuinte,
pra comprar Hugo Boss e Giorgio Armani.
Não! A nudez NÃO é, necessariamente, indecente. A nudez NÃO é
barbarismo. A exposição do corpo não é (necessariamente) falta de decoro ou
desvio de conduta... Em uma sociedade esquizofrênica como a nossa, em muitos
casos a exposição, a nudez, a naturalidade é uma oposição frontal à civilização
e uma crítica a uma organização social tal que, como herdeira da religião,
possui uma visão criminalizante acerca da própria natureza do corpo do homem,
e, como curral dos dominantes, impõe uma vida numa coletividade de máscaras que
são a antítese, literalmente, da honestidade e transparência.
E, para jogar a pá de cal, como se não bastasse de indecência e para
minar o último ‘argumento’ dos caretas, é impossível provar que fazer uma prova
de calça ou saia abaixo do joelho vai me fazer mais ou menos inteligente.
Aliás, na Inglaterra a nudez fez foi aumentar a produtividade. A única
conclusão que posso tirar, portanto, disso tudo, além daquele que me força a
achar uma excrescência as leis que me OBRIGAM a não andar nu, é, talvez, meus
amigos, que os nossos deputados e vereadores devessem trabalhar pelados. Quem
sabe assim, finalmente, eles fariam alguma coisa decente pela sociedade, porque
de indecência os caros bolsos dos seus ternos Armani já estão cheios...
Guilherme Fernandes é mestre em Filosofia e acadêmico
de Medicina.